O Diva de Portugal

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segunda-feira, janeiro 05, 2004

Línguas

Prefiro os vencidos” disse eu. “Há uma certa coragem trágica nos perdedores. Nos underachievers.” repeti, gozando lentamente a pedantice, o delicioso tique snobe daquele último “underachievers”, registo de urbanidade globalizada numa conversa sobre angústias primitivas. É essa a maravilha do inglês. O seu snobismo imperial. Aposto que o próprio Shakespeare se sentia snobe enquanto exclamava “Is this a dagger I see before me?” para as suas paredes. Qualquer que seja a expressão e qualquer que seja o contexto, a língua inglesa exala sempre um registo de civilidade urbana, um misto de Henry James e a 5th Avenue. Porque, estejamos ou não atentos a isso, uma língua é mais do que um código à espera de ser decifrado. Tem uma personalidade própria. E leva um povo com ela. Há palavras no Português que não existem em mais nenhuma língua. Saudade é uma delas. E cholé é outra. Aliás o português vive sempre nessa intensa dualidade entre ser o povo que inventou a palavra saudade ou ser o povo que inventou a palavra cholé. Os ingleses, por exemplo, têm o seu homesick que não roça nem superficialmente a profundidade da nossa saudade. A nossa saudade é mais que o banal sentimento de perda. É uma atitude perante a vida. É aquela dignidade trágica, aquela dolorosa sabedoria que nos faz resignarmo-nos sobriamente à evidência que o que passou já não volta e que há pecados que nunca se expiam. Mas se temos o português da saudade, temos também o nosso Mr Hyde, o português do cholé. A maioria dos outros povos limita-se a associar tal odor ao cheiro desse milenar alimento que é o queijo ou então fazem como os ingleses que usam o prosaico “smell like feet”. Mas o português não. O português sente um fascínio doentio por tudo o que é fétido e por isso cunha e cataloga carinhosamente conceitos como o cheiro a cholé. Aliás só este tipo de poruguês era capaz de criar uma palavra tão áspera, pirosa e desagradável como cholé.
Mas o fenómeno não é exclusivo da língua portuguesa. Veja-se o alemão, por exemplo. Em mais nenhuma língua existe um sinónimo para a palavra alemã schadenfreude. Schadenfreude é aquele sentimento mesquinho de satisfação que temos perante a desgraça dos outros. Em todos os povos do mundo existe tal sentimento, mas só os alemães têm uma palavra só para ele. O que também nos pode dizer algo sobre a pessoa colectiva que é o povo alemão. Um povo é a sua língua. E vice-versa. Cada um deixou um bocado de si no outro. A nossa língua, com as suas qualidades e defeitos, somos nós. Sempre nós. Um povo que vive na saudade do tempo em que não criava palavras como cholé. Mas que vive. Por mais que, quando olhem para nós, os alemães rejubilem na sua schadenfreude e os ingleses nos chamem de underachievers.