O Diva de Portugal

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sexta-feira, janeiro 16, 2004

Já não sou homem há muito tempo (pequeno conto)

Os prédios altos, projectavam a sombra nos becos sem saída. Lugares onde não há luz, tão somente sombra, lugares cujo luar absorvia na penumbra, lugares que apenas o nevoeiro e o vapor das calhas emporcalhadas cumprimentavam. Por entre as superfícies aéreas, chaminés, telhados, janelas e ruínas da civilização erigida em múltiplas construções, um vulto se movia. Quem era, ninguém sabia, o seu nome ninguém conhecia. Mas algo sobre ele se dizia, que era humano, que era besta em simultâneo. Era gente que a noite muda, traja de negro e de animal veste, com pêlo no lugar do cabelo, com garra no lugar de mão, com instinto no lugar da humana razão. E nas costas a razão de tanta desumanidade, a sua cruz crucificada, cruz dela jamais separada, para sempre ali, a ele, espetada...
E por momentos seu rosto foi revelado, por entre o trovão claro que rasgou o céu negro sem emoção, com um inesperado e não anunciado estrondo que introduziu enxurrada de chuva. Era um rosto magro, até na noite pálido, até para o negro sem cor. Os olhos não se descobriam, pois as redondas lentes negras como a noite os cobriam. Se ele via? Era talvez besta cega, mais que humano, besta medonha cujo nome todos esqueceram. Era a figura gótica da cidade, o justiceiro que não pratica justiça, a gárgula sem digna catedral, a pintura a que falta mural. Mais que emplastro, era figura que vivia, que existia, que se movia por entre as sombras da própria noite. E naquele manto como peixe se movia, a figura, rápida e esguia.
- Já não sou homem há muito tempo, desde aquela noite... – murmurou para a noite que não o ouvia e a quem estas palavras sempre repetia esperando ouvir uma palavra de resposta.
E por entre as catedrais da vista nocturna se voltava a esconder, para não mais reaparecer ali, mas sim acolá, bem longe, entre outros prédios, de outra rua, beco ou avenida, de rua sem saída, de calha vazia. Entre os telhados, as varandas ou as escadarias, hei-lo a ele, o confesso companheiro da noite que arrepia e é fria.

Ass: PM