Dogville I
Dogville. Um nome que poderá dizer pouco ou muito, o facto de na pequena apenas vislumbrarmos um cão no final do filme - ainda que sempre presente de uma maneira bastante curiosa - funciona como uma metáfora. O cão não é elemento essencial para a nomeação daquela terra como Dogville, mas uma representação da condição dos seus habitantes.
Não vou falar da história, essa merece ser contada pelo realizador, pelos actores numa rara performance que lembra quase uma peça de teatro. Aliás, à excepção da presença crucial no narrador, a o filme funcionaria bastante bem no teatro.
Um filme rodado na sua totalidade na Suécia, num único e gigantesco cenário que muito lembra o vazio mas funcional palco do teatro, teve um custo de produção de apenas nove milhões de dólares. O realizador dinamarquês Lars von Trier, um adpeto confesso do movimento cinematográfico Dogma 95, usou câmaras digitais de alta definição para obter uma perspectiva mais próxima, realista e dinâmica da acção. A câmara treme bastante nos primeiros minutos, mas se inicialmente parece um mau trabalho de filmagens, no final compreende-se que à medida que o filme se desenvolve os planos tornam-se mais rígidos e frios, menos dinâmicos, acompanhando a degradação da personalidade de Grace. De resto, a influência do cinema Dogma está presente ao longo do filme (dividido em nove capítulos e uma breve introdução e como num livro, narrado) seja pelos parcos efeitos especiais (mesmo a sequência final do incêndio recorre a meros, mas credíveis, jogos de luzes de palco), pela imagem tremida, pelo filme de autor, pelo carácter natural e emocional do filme.
Não é um filme fácil, pode surpreender mesmo a ausência de cenários, mas esta torna-se funcional há medida que compreendemos que Dogville é as suas gentes e que os sentimentos de todos estão a nu, por mais que tentem escondê-los. Desde o condutor, único elo de ligação com a cidade que esconde as suas fugas até ao bordel mais próximo, o protagonista, qual filósofo frustado, o velho cego que se esconde em casa na ânsia de esconder a sua cegueira à comunidade que sempre a reconheceu, etc.
De destacar as interpretações, de Nicole Kidman como Grace, uma personagem vítrea que se transforma num mero objecto e nome ao longo do filme e que foi interpretada com grande rigor e perícia pela actriz australiana, num filme independente que tão bem lhe assenta; do britânico Paul Bettany com o seu enigmático personagem Tom que no final se mostra igual aos outros que repudia; Jeremy Davies que Steven Spielberg mostrou com o Resgate do Soldado Rayan e que repete a personalidade introvertida e reprimida que vimos em Solaris, ainda que sem tanto destaque; um recuperado e inesperado James Caan como o homem que procurava Grace, o seu próprio pai. Aliás, ele é mais que todas as outras personagens um juíz de valores e é a peça essencial para a reviravolta no final em que numa atitude supreendente vinga-se dos habitantes de Dogville. De destacar também a interpretação de Ben Gazzara como Jack McKay, cujo cego é uma doce interpretação que nos faz esquecer a medíocre de Sofia Alves numa certa telenovela, e que nos mostra que mais que cego, este homem se negava a ver a sua condição e era cego perante o que ninguém via, mas que se sentia. Um cego de alma, portanto, cujo olhar não é mais que uma representação de tudo resto, um homem perdido de si mesmo, cujas conversas sobre a luz remetem para tempos alegres em que não só via, como sentia. A narração, a cargo do veterano John Hurt, faz o resto e permite que a passagem de uma Grace enigmática e simpática para uma figura manipulada e sentimentalmente reprimida se faça de uma forma sustentada. A degradação emocional da personagem agrava-se com a degradação física, quando é violada sucessivamente por grande parte da comunidade masculina de Dogville (contam-se pelo menos três cenas, que apenas ajudam a agravar a sensação de impotência da personagem perante a situação, algo que só acaba com a chegada de Caan e dos seus gangsters). Curiosamente, a personagem Tom que se apaixona por Grace é o único a não consumar o acto, mas acaba por a violar psicologicamente, o que culmina num trágico filme para ele, quando a vingança da anti-heroína se inicia.
Não é um filme para todos os gostos, mas aconselharia a quem tiver coragem de contactar com o cinema da linha Dogma 95, numa forma mais ligeira e não totalmente radical do que se vê nos restantes filmes. Nicole Kidman, vale por si só, o bilhete.
Ass: PM
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