O Diva de Portugal

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sábado, outubro 25, 2003

O jardim que mostra o passado

Eis uma breve história. Pouco conta para muitos e para poucos, muito conta. A história se adapta a quem a lê, o jardim toma nova forma, as pessoas novo nome ou face, mas a essência se mantém, a mensagem muitos se identificam com ela ou temem que o destino incerto o faça por eles.
Partilho com os nossos leitores parte do conto, a restante parece-me demasiado inacreditável para ser exposta. Mesmo para um policial...

Ass: PM

O jardim que mostra o passado

"Havia chegado à encosta do jardim. Parou o carro, saiu. Era a encosta, não uma encosta. Tinham sucedido ali muitas coisas para que fosse apenas um ponto de passagem, uma mera paisagem. Não era apenas uma vista para quem olha para o que para lá da janela do carro está, entre um suspiro e uma certa impaciência com o ritmo lento do trânsito no cinzento dia de Inverno. Fora ali que tudo sucedera, muitos acontecimentos, muitos sentimentos, muitas memórias. Tantas. Ele aproximou-se do jardim, caminhando em passo lento, incerto, quase temendo a visão que se impunha pela sua serenidade. Sempre fora um jardim calmo e relaxante, senhor de silêncio e calma, um refúgio para os acompanhados, um fiel companheiro para os desacompanhados, uma bela vista para os que a procuravam, a calma para os que a haviam perdido. Era a beleza daquela região, era um segredo que poucos conheciam, que poucos compreendiam, do qual poucos usufruíam. Dele, jardim secreto, ali erguido na colina rasgada por fiadas de casas senhoriais e centenárias se espalhava a vista da cidade que nascia e crescia, dos multicolores dos telhados, das casas, dos prédios, das ruas, dos parcos jardins que salpicavam de verde a fria visão. Um mar de gente, um mar de construções, eis o que se apresentava a quem ousava olhar para lá do jardim, para lá do refúgio da serena Natureza, que ali, resistia ainda.
Mas não ia ali em lazer. Gostaria de não ter ido lá por isso, antes, gostaria de ter lá ido para se reencontrar com o que negava, com a verdade que a si não mostrava. Há muitos meses que não ia lá, evitava mesmo passar por lá. Fugia ao passado, era certo. O próprio o sabia, o próprio o admitia no silêncio e escuridão do seu apartamento vazio que partilhava com a solidão. E o espelho se tornava cada vez mais humana gente, mais estranho confidente. Ele afastava-se do passado e do jardim, para abraçar o insano monólogo com o espelho que mais não reflectia a sua degradação que ele, cego, ignorava e não admitia. Estava no jardim para trabalhar, talvez não fosse nunca mais lá, não fosse aquela chamada recebida a meio de sono incerto, de sonho inconstante. Queriam-no a ele, a sua especialização podia-os ajudar na investigação de um caso particularmente medroso. A palavra medroso assustou-o, fez crescer múltiplas questões na sua mente e quando perguntou apenas ouviu o silêncio como resposta e, por fim, um seco e frio conselho para ir ver com os seus olhos. Era o seu companheiro, antigo amigo, deixara de lhe falar por sua inteira culpa, simplesmente deixara. Nunca houvera um motivo, o outro perguntava e ele não respondia. Agora, falavam-se apenas enquanto colegas de trabalho. Estranho fim de feliz amizade, mostra inegável de que não só a face dele se degradava como todo o passado que construíra. Pela parte que perdera, desejava, agora, tudo perder. Desejava perder razão alguma para viver. Desejava morrer. Mas era o vazio que o fazia viver, era a chamada na madrugada pedindo o conselho de perito que o fazia manter-se vivo, por enquanto.
Olhou para um canto e viu alguns homens debruçados sobre algo que se estendia sobre a relva. Eles ocultavam-no com os seus corpos e não pôde perceber o que era, mas pareceu-lhe algo... não estava certo, quase arriscaria dizer o que era, mas não podia ser. Então, veio-lhe a memória do feliz passado que se mostrava impossível de alcançar na terrena vida. O passado que perdera, a felicidade que esquecera, o amor que o destino lhe negara. Fora naquele jardim que vira a vida correr, fora ali que passara da escola, ainda novo, para casa. Fora ali que vira os estudantes, como um dia ele seria, sendo praxados pelos veteranos em curiosas praxes e desafios, para depois os ver rindo em conjunto. Mas outros vira, chorando, humilhados. A vida corria, ele crescia. Fora ali que tivera o seu primeiro beijo, não o tomara a ela, ela lho dera, sem ele pedir. Eram jovens, eram inocentes, o seu amor também. Eram enamorados alegres, sem duvidar do amor, sem temer amarem-se. Trocavam confissões, beijos, abraços apertados, segredos ao ouvido deixados e no coração guardados. E foi ali que tivera a sua primeira desilusão. O beijo dela tomara-lho a ele outro, um mais velho que ele, um que sorria mais que ele, um parvo pensou, na altura. No mesmo banco em que trocaram beijos e promessas de amor ela traíra-o com o outro, imaginava no meio da sua raiva. E no mesmo banco, ela confessara a sua traição. Prometera-lhe a verdade, dera-lha e rogara pela amizade, que restava. Dissera que era melhor assim, que ser sincero é a prova primeira de amizade e amor de amigo. Mas ele não queria amor de amigo, saiu do banco e só muitos anos mais tarde lá se sentou. Com o seu derradeiro amor, soube-o no primeiro momento, ficou certo quando a beijou e ela não recusou o seu amor, confessou que também por ele tal sentimento sentia. Amaram-se por anos e naquela banco trocaram confidências, mais sérias, mais adultas, menos inocentes. Eram desiludidos do amor, eram realistas quanto a ele, estavam certos da sua paixão. Mais que o que outro pareciam, amavam o que o outro era. Não o que desejavam que o fosse, o que era. Para ele era perfeito, para ela, ele bastava-lhe assim pois amava-o por isso e duvidava que se ele fosse melhor o amasse mais do que amava. E foi ali que ele disse as palavras que marcaram os seus destinos. Ela respondeu-lhe com um sorriso nos olhos, com um aceno, com um beijo longo e apaixonado, com um contacto com os lábios que simbolizava a união das suas almas para todo o sempre. Ainda era assim, pensou sorrindo entre lágrimas contidas pelas pálpebras fechadas. E anos mais tarde, naquele banco assistiram às brincadeiras dos filhos no jardim, orgulhosos da prova primeira do seu amor. E amavam-se, amavam o que o seu amor criara, prometiam amor eterno, mais, davam-no por certo. E um dia, o destino traíra-os. Ela e os filhos foram tomados em trágico acidente, quando regressavam a casa. Não pôde despedir-se deles e o amigo, que agora ignorava, fora quem os reconhecera. Na altura, disse-lhe que preferia que não fosse ele a fazê-lo, que a ele custar-lhe-ia menos e que preferia que o amigo conservasse a última e mais bela imagem dos três. Ele protestou, queria vê-los, não acreditava na sua morte, era falsa verdade, era mentira... só podia ser, o amor era eterno, porque se extinguia agora a chama que o fazia viver? Não encontrou em si a resposta. Os amigos não eram suficientes, a maior razão para viver havia sido perdida e ao perder tal razão, viver perdia também qualquer sentido. Ouvir o amigo era reprimir os sentimentos de dor e angústia que no seu coração não cessavam. Refugiou-se no escuro do apartamento, no frio das vazias divisões. No silêncio da solidão, na luz azulada do televisor, na insana visão do espelho da entrada. Rumava para ele em busca de si, em busca do passado. Esperava encontrar na entrada a família que perdera, esperando-o e pedindo o apaixonado abraço que não pudera dar antes de os ver partir. E podia ter também ele morrido, podia. O destino foi ingrato no juízo, egoísta na escolha, injusto no escolhido.
O jardim se perdeu nas memórias apagadas no vazio olhar, na depressão que se impunha como único estado para infeliz condição. Passou a evitá-lo, como ao seu passado. E naquele dia tinha que o voltar a encarar.
O jardim onde os filhos haviam brincando, não pôde conter essa lágrima. Não podia fazer mais nada, apenas chorar por eles. Por eles, faria tudo. Eram demasiado pequenos para perceber o seu amor, para perceber o porquê da sua ausência, para perceber que o pai era polícia mas não apanhava ladrões, que o pai ia buscar tostões e com eles tentava pagar o amor que não podia dar. O companheiro olhou-o compreensivo, ele desviou o olhar inflamado com vergonha. Porquê, perguntava-se. Até da amizade tenho vergonha, até de admitir a minha humana dor tenho medo, dizia para si em voz baixa. (...)"