Conto sobre o amor e a dúvida na paixão
O Divã é também um espaço de bom gosto (não falo do meu, claro). Para tornar isto mais interessado e aliviar o meu PC, vou colocar também algumas crónicas e contos da minha autoria. A ver vamos, se o público gosta. Um conto, uma parte de uma longa história que é narrada num conjunto de folhas brancas pelo Último Homem, figura de um último homem que se vê só num mundo prestes a acabar. Um mundo destruído pela catástrofe a que ele sobreviveu pela ganância, vendo-se agora só nele. Herdeiro de algo que não esperava ou desejava, é presenteado com as terríveis consequências da sua decisão. A encarnação dos medos de todos, a realidade consumada para ele, tangível, próxima, inegável. E esperando o fim daquele mundo, o seu fim e com ele o fim do último ser, vai confessando ao papel as suas memórias e sentimentos. Faz um ajuste de contas com o passado, narra as suas incertezas, compreende-as e transforma-as em certezas. Mais que ao papel, que insanamente chega a julgar ser escrito para algum um dia o poder ler, ele confessa a si o que negava e escondia mesmo de si próprio. Eis o contexto e eis o texto!
Ass: PM
"Descobri que tenho cancro mortal dentro de mim. Descobri-o e agora sinto-o. Sinto-o, aqui no peito onde entre as ossadas parcas se fecha enclausurado o coração. É cancro mortal, não visível à vista, impossível de curar a não ser por quem o sente pois só ele o conhece e sabe onde está. Sinto que se contra ele lutar morrerei, parte de mim morrerá com ele, e senão também morrerei levado pela tristeza. Tanta tristeza sinto e apenas ao cancro a devo, tanta que ironicamente até o céu chora neste dia e não por mero acaso parece. Também eu choro e sou finito ao contrário do céu. Embora sinta algo infinito dentro de mim, aquilo que chamei de paixão mas me traiu e se transformou, apodreceu e tomou forma de depressão, que vai e vem, volta e parte para sempre ficar à espreita para cobiçar meus sentimentos nos raros momentos de felicidade. Angústia senti, não por nesses momentos não ser feliz pois o era, pois eram bons, mas por algo me afligir, me rogar para regressar. As suas palavras vazias e enigmáticas ecoaram nesses dias na minha mente, atiçaram minha paixão, queimaram-na, para das suas cinzas nascer algo que me aflige. Tormento que pensei que pararia, pois havia regressado. Mas não, a paixão desaparecera, sentia pavor agora pelos sentimentos maus que me provocara. Ainda sinto, pois vejo nesta insana paixão um pêndulo que vai e vem, que fica por escassos momentos e apenas atiça a fantasia, a cobiça e o amor, que traz tristeza e parte sem se desculpar, sem a findar. Quem me dera morrer, mas não posso. Sou humano e ser pensante, ser sentido e que sente, ser que cria, mas no entanto não consegue obter sobre si o derradeiro triunfo, não consegue obter de si aquilo sobre o qual tem direito, não pode decidir se vive com o tormento ou abraça o eterno sono. Talvez tema sonhar eterno pesadelo, no lugar de eterno sonho. Talvez algo me prenda aqui para além da paixão, talvez... algo que nego, que já nem amo, que já nem prezo, tudo este amor destruiu e por mim começou. Sou farrapo, sou sombra, sou o nada daquilo que era, um nome num vazio, um sentimento num quase cadáver, um não-ser, um escravo de vis sentimentos. E ela me castiga, me tortura, com suas palavras vazias, com promessas não cumpridas, com olhares imperceptíveis, com atitudes contraditórias, com coisas que me confundem, me cegam, me fazem duvidar, me destroem as certezas para deixar as dúvidas, me resta apenas uma certeza. A certeza da dúvida, a certeza que esta existe e me aflige. E não consigo regressar, tento. À medida que me aproximo deste estado, também os meus escritos se aperfeiçoam, se tornam obras mais complexas, mais perfeitas e mais belas a meu ver. Mais me identifico com as suas palavras, com os escritos nas folhas gravados, mais vejo neles um cumplice, amigo inventado que sente o mesmo que eu que me compreendo e que compreendo. Será este o preço a pagar? A derradeira obra nasce quando parte de mim morre. A parte que a criou desaparece e outra a toma por sua e sua a torna."
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