Segundo conto
Mais um texto. O Último Homem defronta-se com sonhos passados, numa altura em que não pode mais sonhar. Escreve, na ânsia de algo, na esperança que algo aconteça e simultaneamente consciente que nada pode acontecer. Espera reencontrar as respostas no papel? Entre as palavras perdidas? Um nome? Como se nem o seu jamais se sabe, é simplesmente o Último Homem e isso parece bastar-lhe tal é a certeza com que assina, com que diz ser o último e o único.
Ass: PM
"Aquele cujo nome ninguém conhece, mas não importa
A minha casa está fria, o último calor dissipa-se no ar gelado. Lá fora, entre as vidraças, vejo a neve, a única coisa que me faz companhia, que vem ter comigo a esta terra de ninguém. Herdei terra sem humana gente, deserto que nem como tal se comporta. Sou o último, volto a escrever, quase na esperança que um mais apareça, nem que se seja para ver os meus escritos incompletos e ao lê-los perceber como a minha ganância foi a minha perdição...
E tinha tantas coisas boas no passado, um passado que já não parece meu, parece de alguém que mudou. Não me é estranho o passado, parece-me, sim, um sonho bonito que já não posso viver e que apenas pela memória revivo culpando-me por o ter perdido. O papel não basta, nem as palavras, nem mesmo que os meus pensamentos fossem claros a todos, poderia expressar o meu arrependimento. Mas de que valeria? Já ninguém os pode ouvir ou entender. Desapareceram, estou só, sou o último dos últimos num mundo mudo que muda e caminha para o seu fim. Curvo-me perante a tosse, a fome, o cansaço, o frio, o desespero, a solidão. Não aguentarei muito mais. Mas completarei esta que é a minha única demanda possível, confessarei tudo o que puder, o que me for permitido por este braço cansado que escreve sem lhe ditarem. Ao menos confessarei a mim, também a mim devo isso.
E à memória me vem aquele mágico sonho, o dia em que não quis parar de sonhar. E agora também sonho, mas não consigo. Mas naquele dia era possível! Lembro-me do sonho e lembro-me de acordar, na cama, com um sorriso na face, mas grande tristeza na alma, pois era um sonho, tinha acabado e herdava agora a realidade que acordado contemplava. Havia sonhado com aquele cujo nome não sei e não creio que alguma vez nome tenha tido, mas isso não importa, no sonho podia-o tocar e não precisava de nome para me parecer real, para poder sorrir. Pequeno, jovem, sorridente, ali estava ele. Não mo disseram, mas sabia que era ele. Era a minha oportunidade de o reencontrar, nem que fosse em curto sonho. Abracei-o e ele inocentemente sorriu, como só os bebés o fazem, sendo sinceros no sorriso, mas também quando não o têm. Mostrou a sua sincera alegria e eu a minha, as lágrimas o provavam, lágrimas salgadas e quentes em rosto frio. Não poderei descrever os sentimentos que senti, apenas sentido-os de novo poderia ser fiel em tal descrição, simplesmente é algo que se sente no momento. E sonhei com um abraço àquele cujo nome nunca soube, como ainda hoje sonho mas sempre com menos emoção pois o primeiro reencontro foi sempre o que mais sentimentos despertou em mim, um turbilhão de sentimentos.
Ouvi o telefone tocar, acordei por isso. Mas ao entender não senti raiva, nem mesmo frustração por ter o sonho interrompido. O sonho não é eterno como o sono que dormia, apenas a morte é o eterno sono e só agora, só nesta cabana, a vejo perto. Atendi, era o Escriba. Dizia-me os bons dias e eu meio sonolento repetia a saudação. Disse-me palavras vagas, não me lembro delas, disse que gostaria de o ver. E de facto ele logo acedeu, talvez as minhas palavras tivessem transmitido algo mais, talvez o Escriba como outros soubesse o que elas diziam sem mais nada sentir. Sim, gostava de o ver e falar com ele, mas também precisava. Ele sabia de quem falaria, mas também não lhe conhecia o nome. Marcámos o encontro no local de sempre, também mais uns vieram. O grupo se havia reencontrado. Mas o braço que dei a cada um, embora com saudade e amizade não era tão sentido como o que dei àquele cujo nome não sei e cuja face apenas pude sonhar. Contei o que sonhara. Eles olharam, nada disseram, não por não quererem, os seus olhos diziam que queriam, mas não conseguiam. Bastou-me o olhar deles, as palavras são vazias, muitas vezes. O olhar deles não era vazio...
E agora regresso à cabana, vindo de viagem ao passado. Viajar sem me mover, eis o que fiz. E ao regressar olho para as folhas de papel, algumas escritas com letra miúda e negra, outras ainda brancas esperando confissões que tomo por incertas. Não sei se conseguirei completar a minha demanda, se conseguir, morrerá o último homem deixando para trás as suas últimas memórias. Mas quem as lerá? Esta pergunta não me deixa, creio que temo admitir a resposta."
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