O Diva de Portugal

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sexta-feira, dezembro 19, 2003

Barba Azul, reconstruindo o mito

Mais um conto, meu, para o ninguém, escrito pensando em alguém. Reconstrui Barba Azul, revisitei-o e nele achei este texto, memórias de apontamentos que numa caixa - antes vazia, agora cheia - deixei.

Ass: PM

"A sala estava escura, demasiado escura, as paredes pareciam tingidas de negro, mas não eram. Apenas pareciam, tudo ali era aparente. O conforto, o calor, os livros lidos, os papéis na mesa estendidos supostamente escritos, supostamente testemunhas de sentimentos sentidos. Tudo, ou quase. Ele era real, ali mirando o fogo que ardia na gigantesca lareira que mais que pelo seu tamanho, que pelo parco calor, enchia aquela sala, tomava-a, dava-a por sua e sua somente. A fogueira ardia, queimava a lenha, tornava-a cinza, sombra da árvore altiva do jardim desguarnecido pelos anos de frio. A brasa gemia, saltava, tentava alcançar o rosto seco, vermelho, quente, mas de coração frio, sem humana emoção, quase que sem vida. Fitava apenas, sem nada pensar, nada ousar dizer ao silêncio. Atrás dele surgiu um vulto, no escuro, que a sala não revelou, não anunciou, sem cortesia, mostrou em inglória forma, sombra de irregular contorno de injusta representação. A sombra de gente curvada, de gente pelo tempo tomada, de gente calada e quase que morta, quase que a vida rejeitando e a morte aceitando, abraçando, dando por sua e por visita em justa e certa hora. Gente fingida, parecia. Mas não seria, o seu rosto não o mostra, não o afirmava. Era mulher idosa, é certo, mas de feições delicadas, com sinceras emoções. Pegou no tabuleiro rebuscado em chá rudemente tomado, virou-se e saiu, muda, calada, ocultada pela penumbra da macabra divisão de velha e desconfortável construção. O homem não se moveu, quase morto, quase no pensamento absorto, não fosse o facto de não estar nem morto, nem pensativo. Estava apenas ali, no cadeirão estendido, em posição de falsa serenidade, de falso descanso. Não o merecia, nem o tinha. O pensamento não o ousava ter, pois sabia que com ele apenas podia sofrer, era o que lhe restava, era o que podia ousar esperar após o seu ingrato acto, após sua ingrata vida, após o pecado com a amada traída, que entretanto a só vida lhe deixara como único consolo. Nem aquela mulher, sombra amiga, lhe falava, trabalhava, a comida cozinhava, ali punha e, depois, o tabuleiro levantava. Mais nada. Não era confidente, não era pessoa existente, era quase omnipresente, quase que verdadeiramente ausente dali. O homem, continuava sentado. Como velho era, notou-se, por escassos momentos, quando a fogueira violenta rugiu e os galhos quebrou, sobre as brasas desabou e a sala iluminou. Sim, era velho, de rosto rugoso, de sobrancelhas fartas, de nariz largo e comprido, de bochechas magras, de olhos de verde perdido, de vida vivida e jamais reflectida. A face magra, quase esqueleto com retalho de pele enrugada mascarado. Vestia um velho roupão, de vermelho escuro, de vermelho quase sujo, de vermelho que naquela penumbra era preto assumido. Em volta do magro corpo, frágil, enfraquecido pela idade ingrata, pelo tempo desperdiçado, se estendia, o tornava volumoso, quase formoso, quando, na verdade, era trapo velho dentro de trapo velho. Levantou-se, pegou na bengala, esculpida por ninguém para alguém e que mais não fazia que suster corpo pois a alma, isso, não conseguia e a esperança, podre, pela caveira escorria, no chão se espalhava, no chão se desfazia e, assim, ali e aos poucos se perdia para não mais regressar, para não mais ao velho corpo retornar, para não mais voltar. As magras mãos com pêlos curtos, brancos como os da calva careca, tacteavam trémulas e hesitantes a cómoda a escassos passos do cadeirão de pele velha, procuravam algo. Acharam, por fim. A castanha moldura, com os quatro cantos reforçados com metal sujo, quase ferrugento pelo tempo, pela humidade, pelas lágrimas nas mãos que a pegaram. Nela, escassamente iluminada pelo laranja rude da lareira fria, uma fotografia amarelada, a preto e branco, um jovem de tenra idade, quase homem feito. Sorrindo para alguém, com outro a seu lado. Ele olhou a moldura, com a manga rota limpou-a e acariciou com os curvados dedos o vidro, a fotografia nela protegida. Pousou-a... fitou-a, abandonou-a, de novo, ali quando o seu olhar se voltou para a porta entreaberta e o corpo lentamente para ela rumou, a sala abandonou.
- Partiram e deixaram-nos o mundo... – disse em voz rouca, velha, cansada, com esperança nenhuma, de coragem abandonada – Deixaram-nos o mundo? Ou ao mundo? Quem sabe, eu não. E mais ninguém poderia saber, mais ninguém poderia entender, perceber. Nem eu, que os deixei partir e nada pude sentir, que às palavras apenas pude fugir, enquanto a emoção me dizia para não o fazer e a razão, concordando, me dizia para retroceder, para o meu erro entender e corrigir. Mas não, nada pude fazer, senão fugir ao pensamento, ao humano sentimento. Fugi, em suma.
E a porta fechou-se, deixando a sala vazia, fria, sozinha com o seu silêncio apenas interrompido pelo não ser que é a fogueira e pelo seu lamento sem sentimento. Ali, com a fotografia, velha, quase que rasgada, não fosse a moldura acastanhada."

Barba Azul, não tem doce rosto,
Nem doce voz, nem altivo posto.
É nas palavras, por vezes, injusto,
É sincero com grande custo.