Escrevo algumas linhas, para falar de Tintim. Este é, a meu ver, um dos heróis mais interessantes do mundo da BD clássica. Consegue manter-se actual e fascinar os pais, os filhos, gerações após gerações. Não é lugar comum e prova disso é a aposta do Público em publicar a colecção, isto após O Independente ter publicado 8 álbuns das aventuras do personagem em várias partes. Pena a impressão e acabamento não honrarem o personagem, se seguissem o exemplo dos DVDs não haveria queixa a apresentar (o último Total Recall pareceu-me valer o dinheiro e a edição tem uma qualidade que nada deve a uma edição comprada).
Olho para a minha estante, nas prateleiras encontro o fiel Tintim, entre clássicos da literatura, revistas de cinemas, bandas-desenhadas e mais uma data de géneros literários e tipos de capas diferentes e panóplias de cores e tons, formatos e disposições. É um companheiro de infância que não ousei mandar embora. Até porque redescobrindo Tintim, enquanto folheava uma das suas aventuras, me apercebi que este poderia também ser, muito bem, um companheiro para a vida. É o tipo de livro que não me importarei de ler aos meus filhos, como gostaria de lhes mostrar as fantásticas histórias da Rua Sésamo ou as maravilhosas séries de animação (das quais, para mim, o Bocas/Ox Thales é uma referência incontornável).
Hergé mostra-nos o quão criativo foi e o quão inovador ainda mostra ser. Na década de 80, Tintim ganha a sua derradeira obra. O tempo, tal qual vil traidor, rouba-lha. Mesmo incompleta, Tintim e A Arte-Alfa, é a derradeira obra de Hergé e uma das cinco melhores, numa colecção composta por mais de uma vintena de títulos e mais de cinco centenas de personagens (segundo consta). Mesmo assim, estando inacabada, é uma aventura única, complexa na história, inventiva, dinâmica, actual e que somente não viu tais qualidades amplamente reconhecidos por poucos a conhecerem. Foi acabada por um colaborador. Sou sincero no que, de seguida, digo: não gostei, achei que Hergé merecia melhor, merecia ser deixado como está, que a edição feita pela sua esposa devia ser única por ser a derradeira, a única que foi de facto feita por ele, a única que nos mostrava o verdadeiro Tintim, o velho companheiro, o velho espírito da série e o enredo que todos esperávamos de um grande criador. Disse e bem numa certa entrevista que ele, Hergé, era Tintim e que Tintim e os seus eram seus filhos, poderiam ser continuados por outros, mas jamais seriam Tintim e os seus. A essência se perdeu, sem dúvida, com o autor. Existem, é verdade, excepções. A última aventura de Blake e Mortimer chega a ser superior a algumas das aventuras feitas pelo próprio Jacobs! Mas Tintim não foi o caso. A edição de longe mostra-se estranha ao leitor ambientado com as aventuras do jornalista, soa-lhe falsa e artificial, imposta. Falta-lhe a dinâmica de Hergé, o subtil detalhe e a atenção dada ao pormenor e ao enredo, com Hergé não havia lugar para clichés, apenas para o puro génio criativo. Falta-lhe o humor do autor belga. De resto, quanto ao humor, a tira mais bem concebida é nada mais nada menos que uma das produzidas pelo próprio Hergé! Nesta história tudo parecia contribuir para um grande sucesso, a arte-alfa criada pelo autor e que se baseava nos movimentos artísticos da década de 70, as seitas religiosas, o contra-bando de arte, etc tudo temas inexplorados e apesar de tudo actuais. Saber que tal obra foi deixada inacabada foi facto penoso, senti pena pela perda de Hergé e de Tintim. Tintim morreu da pior maneira possível, inacabado. Preso entre a morte e a vida na própria aventura, no momento crucial. Hergé deixa o mundo e o seu amado filho, adormece no eterno sono e deixa inacabado um verdadeiro sonho. E entre nós, leitores e entusiastas, grande pena, grande saudade, chora-se a perda de dois, não apenas de um. Resta lembrar aquela que é e será uma das mais marcantes personagens da BD, Tintim. A qualidade das suas aventuras fazem dele uma leitura intemporal, um clássico actual, não uma obrigação, mas um prazer no reencontro com o passado estranhamente feito presente no curto encontro. Tintim é herói sem tempo, sem pátria (quantas vezes lhe reconhecemos a identidade belga?), é um herói de todos, por todos e para todos. É um professor sábio nos valores, inteligente nas opiniões, humano nas acções. E com ele Milu e Haddock, mais que amigos, a extensão de Tintim. Haddock, capitão, de primeiro nome Archibald. Gosto imenso do personagem. É companheiro, amigo, humano nas qualidades e defeitos, quase que real, um anti-herói e uma pessoa que negando as suas fraquezas não as consegue ocultar. É de todos o mais adorável, o que mais riso genuíno capta e se fiel mostra, lealdade que prova ao acompanhar Tintim ao Tibete, numa aventura mágica, qual alegoria sobre a amizade. É leal ao salvar Tintim no País do Ouro Negro, ou quando partilha os raros momentos de descanso e lazer.
Reconhecemo-nos em Hergé e no seu mundo, que nos apresenta como sábio e experiente cicerone. Em Spontz podemos reconhecer o estereotipo do vilão nazi das tiras de BD das décadas de 40 e 50, ou um vilão caricato de Major Alvega/Ace London, Coronel Von Block interpretado por António Cordeiro, se não me falha a memória. Em Girassol o professor e inventor que imaginamos ser na tenra infância. Em Dupont e Dupond o lado ingénuo de cada um. Em Oliveira, o emigrante português, o compatriota que outros parecem esquecer menos e amar mais que nós. Em Haddock, o amigo caricato mas sempre disponível. Em Serafim, o chato vendedor e amigo do inconveniente. Em Nestor o fiel mordomo, tal qual um outro, Alfred de Batman. Em Tintim Rumo à Lua, o sonho de muitos. Em Tintim no Tibete, o valor máximo para muitos mais.
Encontrei na internet a versão acabada da última aevntura, vão quase 3 meses. Antes, havia encontrado na mágica estante de uma célebre livraria um tesouro que desconhecia. Falo do brilhante livro e completíssimo documento que é a obra de Michael Farr (um entendido em Tintim e um dos mais conhecidos especialistas nas suas aventuras), “Tintim, el sueño y la realidad”. Tristemente apenas em espanhol e em Espanha, pois por cá ainda não ousaram traduzir uma obra tão rica e oportuna. Mais que uma análise é uma fantástica síntese de documentos, opiniões e esboços do próprio Hergé do mundo de Tintim. Vale a pena ver...
Espero que alguém reconheça nestas linhas a sua opinião sobre Tintim, a sua paixão por uma eterna personagem, uma marca num mundo tão mágico como a BD.
Ass: PM